domingo, 14 de setembro de 2008

Um gosto

Algumas pessoas me acham um pouco louco por causa de coisas como estudar o grego antigo; outros, a maioria, acham-me apenas um tolo. Se me perguntam: _ Para que estudar uma língua morta, ó seu bobo? Respondo: _ Porque eu gosto.
Na verdade, não sei o porque estudo a língua de Homero. Talvez porque goste ou me identifique, de alguma forma, com o helenismo. Não é isso grande novidade; não foi por pouco tempo que se estudou o grego e o latim nas escolas. Hoje vivemos uma época não diria anti-clássica, mas a educação de massa parece que precisou botar de lado certos conteúdos em função de outros; e o classicismo pagão foi um desses outros. O que não passa de política educacional; quando tenho falado sobre episódios do ciclo troiano a meus alunos (por causa de Os Lusíadas) eles quase todos sempre mostram-se interessados. Também é impossível não se interessar pela mitologia helênica. Os gregos eram mestres para inventar e contar histórias. Há uma personagem que me vem à lembrança agora que é a Fama. Diz a lenda que antes mesmo de se iniciar a batalha de Mícale, já a notícia da vitória em Platéia havia alcançado as forças gregas (diz-se que as duas batalhas se deram no mesmo dia, uma de manhã, outra à tarde) que se preparavam para dar combate aos persas na costa jônica, onde pretendiam libertar as colônias gregas dali do jugo de Xerxes. Como não havia possibilidade da notícia atravessar o Egeu em pouco mais de duas horas, diz-se que foi a Fama que a levou. Essa notícia estimulou muito os soldados gregos e foi uma das causas dessa outra vitória, que inaugurou o poderio de Atenas no Egeu e o império que foi curto mas que longas consequências trouxe à civilização ocidental. Acho impressionante tais criações mentais: uma deusa, a Fama.

Estudo o grego porque gosto. No momento tenho tido excelentes horas de prazer com a poesia de Safo. Verter para o português o poema sáfico, conseguindo preservar, ao mesmo tempo, o conteúdo e a estrutura é muito gratificante. Ainda que do grego para o português tenhamos que transformar o ritmo quantitativo em acentual. O que é outra viagem de prazer, hehehe.

Na verdade, entendo muito pouco de literatura. Só agora é que me dou ao trabalho de estudar com alguma profundidade a expressão poética em sua complexidade; conceitos como os de adônio, troqueu, dátilo, cesura e icto, entre muitos outros, só agora descobri a existência e estou a estudar e a gostar muito.

Se não, vejamos como se pode inovar naquilo que já tem mais de 2500 anos.
Há pouco mais de um mês, publiquei aqui no blog, uma tradução que fiz de uns versos sáficos muito conhecidos, que entitulei "Ode a uma donzela". Fiz a tradução com o apoio do dicionário, é claro, e de algumas velhas traduções para o inglês. Há alguns dias encontrei várias traduções desse poema para o português. Vejam vocês a riqueza e a variedade de traduções (há muitas mais) deste poema que, segundo dizem, foi dedicado à Atis:

O original

Fr.2

Φαίνεταί μοι κήνος ἴσος θέοισιν
ἔμμεν ὤνηρ, ὄστις ἐναντίος τοι
ἰζάνει, καὶ πλυσίον ἆδυ φωνεύ-
σας ὑπακούει

καὶ γελαίσας ἰμερόεν, τό μοι μάν
καρδίαν ἐν στήθεσιν ἐπτόασεν·
ὡς γὰρ εὔιδον βροχέως σε, φώνας
οὺδὲν ἔτ' εἴκει·

ἀλλὰ κὰμ μὲν γλῶσσα ἔαγε, λέπτον δ'
αὔτικα χρῷ πῦρ ὐπαδεδρόμακεν,
ὀππάτεσσι δ' οὐδὲν ὄρημ', ἐπιρρόμ-
βεισι δ' ἄκουαι.

ἀ δέ μίδρως κακχέεται, τρόμος δέ
παῖσαν ἄγρει, χλωροτέρα δὲ ποίας
ἔμμι, τεθνάκην δ' ὀλίγω 'πιδεύης
φαίνομαι [ἄλλα].

ἀλλὰ πᾶν τόλματον, [ἐπεὶ καὶ πένητα].


Para o inglês

Blest as the immortal gods is he,
The youth who fondly sits by thee,
And hears and sees thee all the while
Softly speak and sweetly smile.

'Twas this deprived my soul of rest,
And raised such tumults in my breast;
For while I gazed, in transport tost,
My breath was gone, my voice was lost:

My bosom glowed; the subtle flame
Ran quick through all my vital frame;
O'er my dim eyes a darkness hung;
My ears with hollow murmurs rung.

In dewy damps my limbs were chilled;
My blood with gentle horror thrilled;
My feeble pulse forgot to play;
I fainted, sank, and died away.

Ambrose Philips, 1711


Para o português, das quais não encontrei o(s) autor(es) das traduções

"Parece-me igual aos deuses
ser aquele homem que, à sua frente sentado,
de perto, doces palavras, inclinando o rosto,
escuta,

e quando te ris, provocando o desejo; isso, eu juro,
me faz com pavor bater o coração no peito;
eu te vejo um instante apenas e as palavras
todas me abandonam;

a língua se parte; debaixo da minha pele,
no mesmo instante, corre um fogo sutil;
meus olhos me vêem; zumbem
meus ouvidos

um frio suor me recobre, um frêmito me apodera
do corpo todo, mais verde que
as ervas
eu fico
e que já estou morta
parece (...)
Mas (...)".


Ventura, que iguala aos deuses,
Em meu conceito, desfruta
Quem, junto de ti sentada,
As doces falas te escuta,
Goza teu mago sorrir.

Quando imagino em tal gosto
ë minha alma um labirinto;
Expira-me a voz nos lábios;
Nas veias um fogo sinto;
Sinto os ouvidos zunir.

Gelado suor me inunda;
O corpo se me arrepia;
Foge-me as cores do rosto,
Como ao vir da quadra fria
Entra a folha a desmaiar.

Respiro a custo, e já cuido
Que se esvai a doce vida!
Arrisquemo-nos a tudo...
Contra uma angústia insofrida
tudo se deve tentar.





Igual aos deuses me parece
quem a teu lado vai sentar-se,
quem saboreia a tua voz
mais as delícias desse riso.

quem me derrete o coração
e o faz bater sobre os meus lábios.
Assim que vejo esse teu rosto,
quebra-se logo a minha voz,

seca-me a língua entre os dentes,
corre-me um fogo sob a pele,
ficam-me surdos os ouvidos
e os olhos cegos de repente.

Torna-se líquido o meu corpo:
transpiro e tremo ao mesmo tempo.
Vejo-me verde: mais que a erva.
Só por acaso é que não morro.



O ciúme

Parece-me igual aos deuses
o homem que, diante de ti e próximo,
escuta a tua doce voz e o teu
riso amorável. Isso faz-me

tumultuar o coração no peito. Na verdade,
basta-me ver-te para que
a voz me falte, a língua
se me fenda e um repentino

fogo subtil alastre
sob a minha pele, os olhos
se me escureçam, os ouvidos
me zumbam, o suor

me inunde, um arrepio
me percorra toda. Fico
mais verde do que a erva. Sinto
que vou morrer.

Mas tudo é suportável, desde que humilde.


E a minha

Ode a uma donzela

Parece a mim que semelhante aos Deuses
é aquele homem que ante ti se senta
e perto então de ti a tudo atenta
no quanto dizes

e em tua graça. E tal que se desnuda
o coração que me estremece ao peito,
pois o instante em ver de ti tal jeito
quedou-me muda.

Se finda enfim calou-me a língua ao fundo,
já um grácil fogo à pele irrompe e a(s)cende,
e os olhos turvos, sons que não se entende:
tudo confundo!

Ah! o suor escorre e é também fremente
o corpo todo; e a palidez me toma
[e tal à seca relva a morte assoma],
de tão carente.

E [inda pobre], corajosa em tudo.

Ps. A exclamação em "tudo confundo!" resolvi depois.



Como se pode ver, as possibilidades são muitas em se fazer a tradução. Vou traduzi-la outra vez em breve. Há coisas que não gostei, que fugiram um pouco da sentido original. Para isso estou investindo na aquisição de alguns livros. No entanto, há coisas de que gostei, como ter conseguido preservar os adônios típicos da estrofe sáfica. Explicando melhor: O adônio é aquele quebrado que encerra a estrofe e que é formado de um dátilo (uma longa e duas breves) e um troqueu (uma longa e uma breve) ou espondeu (duas longas); cinco sílabas portanto. Na tradução, ainda não sei bem o porque, decidi por uma tônica na quarta sílaba do quebrado adônico, como em 'tudo confundo' e 'de tão carente'. Esta parte eu gostei e deu muito trabalho.

Bem, gosto de estudar o grego pela poesia. Seja lírica, como a sáfica; trágica, como em Ésquilo; a épica de Homero; ou o cômico Aristófanes. Em Pompéia, nos meados do século XVIII, encontrou-se fragmentos de alguns poemas de Safo. Não estou bem certo, mas entre esses estava a "Ode a Afrodite".
Se encontrarem mais poesia em Herculano será muito bem vinda. A beleza não tem idade, é coisa que brilha por dentro.

2 comentários:

  1. Que capricho, Josaphat. Não, não acho loucura não, acho bem centrada, uma pessoa que procura estudar uma língua clássica, recuso-me a dizer língua morta. Eu já estudei latim, quero dizer, dei umas pescoçadas, não levei adiante, mas o pessoal dizia isso sim: que bobeeeeeeeeeeira, estudar latim pra quê? Esse povo aí que vá ver o big brother e os versinhos do Pedro Bial.

    Repito, muito capricho.

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  2. Do grego antigo entendo um pouco Bete, e traduzo.
    Mas me diga cá:
    o que quer dizer capricho,
    é gíria paulistana,
    ou devo achar que sou
    caprichoso?

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