sexta-feira, 15 de agosto de 2008

Frei Beto e as origens da civilização patriarcal






















Os meus inúmeros leitores sabem da minha simpatia pela igreja católica. Igual a zero vírgula qualquer coisa. Embora o frei Beto se utilize da Bíbria para justificar as suas críticas à sociedade patriarcal, não deixa ele de fazê-las, as quais são muito bem vindas, quanto mais sendo de um frei católico utilizando a Bíbria para falar mal -sem o saber - da própria Bíbria, que é a sumidade literária do patriarcalismo planetário. Quer livro mais patriarcalista que esse? Nela até se pode dizer: _ Até tu Jesus?

Frei Betto *


Adital

A natureza obedece a ciclos repetitivos: estações do ano, fases da Lua, movimento da Terra em torno do Sol etc. Na agricultura, a seqüência inelutável de semear, nascer, brotar, frutificar e morrer. Não por acaso os antigos reforçavam o patriarcalismo associando a mulher à terra na qual o homem "planta" a semente (daí "sêmen") da vida. Ele portava a vida em potencial, como o camponês guarda consigo as sementes. Ela atuava como mero receptáculo, vaso no qual a semente germina.

A dissociação entre ser humano e natureza advém do aparecimento da cidade, surgida por volta de 3500 a.C. Já não são os humanos que se adequam à natureza. A relação se inverte. Os humanos criam para si um espaço, o urbano, separado do rural. E deixam de ser mero mantenedores dos ciclos reprodutivos da natureza, para se tornarem produtores, inventores, artífices.

Rompe-se o equilíbrio ecológico. Os humanos se emancipam, submetem a natureza às suas exigências e projetos. O corte é muito bem simbolizado no episódio da torre de Babel (Gênesis 11, 1-9), jóia literária em menos de dez versículos.

Segundo o autor bíblico, após o Dilúvio "todos se serviam da mesma língua e das mesmas palavras". Não havia diversidade de enfoques e opiniões. O ponto de vista de um, o poderoso, era o de todos. E a atividade agropastoril igualava as pessoas.

O advento das cidades-Estado provoca um movimento migratório do campo para a urbe, representada no relato bíblico pela "terra de Senaar". Ali os humanos decidem "construir uma cidade" - a Babilônia, que significa "porta do deus" - com "tijolo que lhes serve de pedra e o piche de argamassa". (A Babilônia era a capital da Mesopotâmia, atual Iraque).

A revolução tecnológica representada pelo tijolo (insuperado até hoje) imprime aos humanos a consciência de que não estão mais condicionados pela natureza. A relação se inverte. Agora é o ser humano que condiciona a natureza. Transforma-a em artefato, cultura, faz do barro cozido a nova pedra e do piche, a argamassa.

Tais avanços enchem os humanos de orgulho. Não satisfeitos de "construir a cidade", decidem abrir a "porta do deus", ou seja, erguer "uma torre cujo ápice penetre nos céus". Aqui o relato expressa duas ambições, a de edificar uma montanha artificial (a torre), repositório da divindade, e a de "penetrar nos céus", quebrar o limite entre o humano e o divino, o profano e o sagrado, a Terra e o Céu. Já não é a divindade que desce à Terra, é o ser humano que invade o Céu graças à obra de suas mãos.

Toda essa sabedoria explica a arrogância decorrente, ainda hoje, de avanços científicos e tecnológicos. Queremos ser deuses. E agora, como nunca, ansiamos pela imortalidade, como Gilgamés, a primeira figura urbana da história, rei da cidade-Estado de Uruk, na Mesopotâmia, no terceiro milênio a.C. Fortunas são consumidas neste sonho: resfriamento de embriões e cadáveres, clonagem, cirurgia plástica, terapias de rejuvenescimento, drágeas em quantidade, exercícios físicos, dietas para todos os gostos, equipamentos miraculosos, livros de auto-ajuda etc. Tudo para nos livrar da velhice e permitir que desfrutemos, para sempre, de uma vida saudável… Morrer tornou-se acidente de percurso.

O versículo 4 registra as propostas de construção da cidade e da torre, e destaca o principal motivo de tal empreitada: "para ficarmos famosos e não nos dispersarmos pela face da Terra". Não se tratava de obter felicidade, bem-estar, bênçãos divinas. Importava a fama, possuir um nome sobreposto aos demais, e ficar segregado, seguro.

A fama nem sempre traz felicidade e a segurança, liberdade. Quanto mais famosa a pessoa, maiores os cuidados de segurança para evitar assédio e risco. Pelo fato de atrair dinheiro e poder, a fama é uma das mais sedutoras tentações. Pode-se obtê-la também pela via do poder, mas nem sempre através da riqueza, exceto se houver ostentação.

Babel é semantema de Babilônia. Deriva da raiz hebraica "bil", que significa "confundir". Narra o texto bíblico que Javé, ao observar Babel, convenceu-se de que os humanos se fechavam em seus próprios e ambiciosos projetos, deixando de acolher os desígnios divinos. "Isso é o começo de suas iniciativas!" - disse o Senhor. "Agora nenhum projeto será irrealizável para eles".


* Frei dominicano. Escritor

www.adital.com.br


2 comentários:

  1. Adélia Prado diz que a bíblia é uma poética. Acho que ela deve ser entendida como tal, uma poesia.

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  2. Temi que vc se incomodasse com meus comentários ácidos sobre a igreja e a Bíblia.
    Há poesia sim na Bíblia. Acho os cânticos de Salomão lindos, mas ainda assim, ali, ele compara a mulher a uma égua. É a questão do patriarcado que já cansou. Mas há poesia sim, além de ser um documento histórico né.

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Provérbios gregos