domingo, 10 de agosto de 2008

Um livro - Madame Bovary - Gustave Flaubert

Tendo terminado semana passada "O Idiota", de Dostoiévsky, e um outro livro menor (Maria Antonieta - a última rainha de França de Evelyne Lever), renovei a leitura na biblioteca pública e trouxe o primeiro volume d' "Os miseráveis" de Victor Hugo - do qual até hoje somente li "Os trabalhadores do mar" - e o "Madame Bovary" do Flaubert. Foi este que li primeiro. Para mim, o livro esteve longe de tocar-me quanto quaisquer dos de Dostoiévsky. Não se pode dizer, no entanto, que se trata de um livro ruim. Muito pelo contrário, é um livro complexo, não sendo à toa um clássico. O romance, considerado o marco da literatura realista, surgida em meados do século XIX, causou um enorme furor à época, sendo Flaubert inclusive levado aos tribunais por obcenidade e heresia (desrespeito pela igreja católica). E se lembrar que, poucos anos antes, os próprios tribunais franceses haviam mandado para a guilhotina uma quantidade considerável de religiosos católicos, entre muitos padres e freiras...
Mas o livro de Flaubert desenvolve 'aparentemente' o tema do adultério feminino. É em torno à figura de Emma Bovary que se dá a história, que já é bem conhecida e sobre a qual muito também já se falou. Emma é uma personagem que rompe as amarras que confinam - ainda? - as mulheres a viver como boas esposas, caseiras, apáticas, previsíveis. Não que ela o faça como Antígona, que também rompe uma ordem estabelecida. Mas esta rompe uma ordem maior e ainda o fez como mulher, o que faz sua ação maior ainda. Antígona sabia o que queria, tinha consciência de que atacava uma instituição poderosa e de que as consequências seriam terríveis. Como o foram.
Mas Emma não está interessada em romper as amarras da sociedade burguesa-católica-hipócrita de sua época. Emma queria apenas sonhar. Este foi o seu crime. Querer sonhar seus sonhos de mulher, seus sonhos de romance, seus sonhos de príncipes e de princesas. Ela queria ser uma princesa e ser salva por um príncipe da sua vida monótona e medíocre. Emma imagina que casando com Charles encontraria esse sonho de amor, mas Charles não era um príncipe. Na verdade ele jamais seria mais do que um sapo. Ou um boi como o próprio nome já revela. Uma criatura tão inerte e lenta como um bovino.
Pode-se ver no romance como que uma crítica à ainda jovem 'cultura de massa' que nascia por aqueles tempos. Mass mídia representada pelos romances de folhetins muito difundidos então. Emma os devorava. Aquele mundo de fantasia, de amores possíveis, de festas, lindas mulheres e másculos homens, de vestidos extraordinários, de bailes e carruagens, de beijos e contatos imediatos transtornou as idéias da pobre Emma.
Mas ela não é tão vítima assim. Ela fez suas escolhas. E embora insegura do que fazia (daí não ser ela uma heroína como Antígona), sabia que corria um grande perigo com suas escapadas noturnas ao jardim para encontrar Rudolphe, ou em suas falsas viagens à Ruon para lições de piano, quando só fazia era passar dias e noites inteiras na cama com León.
A crítica social é constante no romance. O realismo transparece na exposição dos mecanismos de controle social feito pela igreja e pelos ideais pós-revolucionários que davam ao homem (não à mulher) a liberdade e a possibilidade de ascensão, tendo como meios somente seu talento e esforço pessoal. Ainda que em parte seja verdade, esses méritos pessoais ainda não são o suficiente para a ascensão. Os diversos centros de poder têm que ser constantemente consultados e por estes aprovados.
Não posso aqui fazer uma análise maior do livro. Nem tenho competência para tanto. Mas duas coisas chamaram-me a atenção no romance. Quais sejam:
1- Não tendo a mulher, ainda, a possibilidade de uma ascensão pessoal na sociedade a partir de seus talentos pessoais, tinha ela, no entanto, a possibilidade (que não tinha antes) de casar por amor. Os casamentos arranjados, embora ainda existissem, estavam em desuso; os pais já então procuravam respeitar os sentimentos das filhas, ainda que não deixando de valorizar o patrimônio do pretendente.
Não fica claro o porque de Emma ter se casado com Charles. Não me pareceu que houvesse amor da parte dela. Ficou-me a impressão de que, talvez, ela já estivesse ficando velha demais para uma moça de província - onde os partidos masculinos eram mais escassos - e Charles representasse aquela figura com potencial de ascensão em sua carreira de médico. Mas o que notei foi, novamente, aquele personagem feminino que anseia por sua expansão, por expressar o que é próprio de sua natureza, a imaginação, o amor, o sonho, o proibido em fim. E a sua total aniquilação por seu - ainda que titubeante - atrevimento em romper com as amarras do patriarcalismo representadas na figura do burguês e do padre. Este foi o seu verdadeiro "crime". Flaubert, no fim de sua vida, mostrou que ele próprio não compreendeu a personagem que criou, se fazendo de juiz, vestindo a couraça patriarcal e reclamando que a "prostituta Emma" ficava e ele partia. Emma, nos momentos que agiu como puta, como por exemplo quando pousa a mão sobre a perna do agiota na tentativa de convencê-lo a prorrogar-lhe a dívida, só o fez porque à mulher não restava nada a não ser utilizar-se de suas qualidades pessoais de doadora do amor e da beleza. A santa e a puta são os dois lados da mesma moeda. Para bom entendedor...
2- Em segundo lugar, o que realmente me fascinou no livro, foi o seu erotismo. A mim, excitou-me (fisicamente mesmo moras?) em várias passagens. Não há, em todo o romance, nenhuma descrição do corpo nu, nem narração de uma cena sexual. Tudo consegue Flaubert com as elipses, com as sugestões. A cena da carruagem é mais erótica do qualquer cena de sexo que se vê nos filmes atuais. Entendi o porque do livro ter causado tanto alarde. O recurso da sugestão era largamente usado pelos escritores franceses do século XIX. Para os poucos que leram "As memórias de um médico" de Dumas Pai, se recordarão da passagem do "Colar da Rainha" onde Maria Antonieta fica mais de uma hora sozinha com Charny dentro da casa de banhos dos jardins do Trianon. Dumas apenas sugere o encontro amoroso que culmina no ato sexual. Apenas deixando o leitor tirar suas próprias conclusões do que poderia ter acontecido naquela uma hora em que os dois ficaram sós. Mas em Flaubert a sugestão não se lança só aos pensamentos do leitor, lança-se aos seus sentidos, como a já citada cena da carruagem que, começando às onze horas da manhã:

"E, no cais, entre fardos e barricas, nas ruas, parados às portas, os burgueses abriam muito os olhos, ante aquela coisa extraordinária na província: uma carruagem, com as cortinas descidas, e que reaparecia continuamente, mais fechada que um túmulo e balouçando como se fosse um navio.
A certa altura, no meio do dia, em pleno campo, quando o sol dardejava com maior intensidade contra as velhas lanternas prateadas, uma mão nua saiu por entre as cortinas de pano amarelo e jogou pedacinhos de papel, que se dispersaram ao vento e foram cair mais longe, como borboletas brancas, num campo de trevos vermelhos, todo em flor.
Afinal, lá pelas seis horas, a carruagem parou numa viela do bairro Beauvoisine e desceu dela uma mulher, que se foi, com o véu baixo, sem olhar para trás."

Cenas como esta aparecem algumas vezes pelo livro - como a da feira rural que é, sem dúvida, cinematográfica - e contribuem muito para que o romance tenha sido considerado como o primeiro da literatura realista.
Nos capítulos finais, quando da agonia e morte de Emma, o farmacéutico e o médico de fora, presentes no quarto, não se fazem de rogados em discutir política e economia sem se importarem com o sofrimento que se derramava ao seu redor. Nessa cena, a morte não recebe nenhum tratamento romantizado, não há glória alguma, apenas uma morte a mais, comum, em um lugar comum, de uma pessoa comum. A vida segue em frente.
Apesar do título e do miolo todo do enredo girar em torno à Emma Bovary, chama a atenção ter Flaubert começado e terminado-o com o personagem de Charles. Confesso que ainda não entendi isso.

Como todo grande livro, saber-se a história antecipadamente nenhuma diferença faz.

Tout en monde c'est une peine.

Ps. Assisti o filme de Claude Chabrol e gostei. Especialmente dos olhos a todo instante marejados de Izabelle Huppert.

Aqui o ebook, em português, da mesma edição da Abril cultural que li. Clique na imagem, que tirei de uma edição inglesa.

5 comentários:

  1. Jorge Reis você tem toda razão! Esplêndida análise!

    A capa do livro é belíssima.

    Seu blog é uma preciosidade literária e cultural.

    Estou numa busca frenética ao DVD "Noites Brancas" ,conhece uma fonte ?

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  2. Belíssima capa deste ebook.Parece que Ema saltou do livro para capa.

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  3. O Noites Brancas, que é um dos casos raros de obra cinematográfica que se iguala ou supera o texto literário, eu o encontrei no site "Makingoff" e fiz o download via torrent.
    Obrigado pela visita e volte sempre!

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  4. Estava pesquisando sobre esse livro e me deparei com essa interessante análise...

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