terça-feira, 29 de julho de 2008

Passagem das horas

Quando a porta se fechou atrás de si, sentiu novamente aquele calafrio, que lhe vinha todas as vezes que percebia aquela imensa solidão. Seus olhos percorreram o pequeno espaço do úmido cubículo em que estava encerrada havia dois meses e meio. Pouco tinha para se olhar: a cama simples, onde no respaldo brilhava a única vela, e a cadeira. Dirigiu-se à cama e sentou-se, mirando a parede escura logo a frente. Ficou assim por uma hora talvez. Não havia pensamentos, apenas aquela sensação, um misto de vazio e silêncio. De certa forma, o que iria se passar era um alívio. O sofrimento já havia sido demais. Queria apenas descansar de tudo aquilo.

Despertou do torpor e chamou o guarda Gilberto. Pediu-lhe uma tesoura, papel e tinta. Ele consentiu no papel e tinta, mas na tesoura não. Ela sorriu-lhe tristemente e lhe disse que apenas queria cortar os cabelos. Ele mirou-a por alguns instantes, ainda em dúvida. Ela lhe tornou: _Uma tesoura não me dará uma morte digna, senhor Gilberto. Ele abaixou a cabeça, e assim, respondeu: _Aguarde um instante, senhora.

Daí a pouco voltou. Trazia o papel, a pena, a tinta e a tesoura. Deu-lhas pela abertura da porta.

Ela então se sentou na cama e, apoiando o papel sobre as pernas, escreveu sua última carta. Era endereçada à cunhada, a quem sempre se dirigia como irmã:


É a você, minha irmã, que escrevo pela última vez. Acabei de ser condenada, não a uma morte vergonhosa, pois esta é reservada apenas aos criminosos, mas agora irei encontrar seu irmão.”[...]


Terminou a carta, que Elizabeth nunca iria receber, e lhe veio de novo aquele choro compulsivo, com o qual já se acostumara. Os seus olhos, de uns tempos para cá, estavam sempre vermelhos e inchados pelas lágrimas constantes. Chorava não pela morte próxima. Talvez o fizesse pela separação dos filhos, por saber que nunca mais iria vê-los. Buscava na imaginação a imagem de seus rostos, de seus gestos e do tempo em que tudo ainda estava em seu eixo. Quiçá chorasse por aquele senhor, aquele conde que lhe roubara o coração. Amara o marido como marido, o conde, amara como homem. Foi o único. Mas as imagens vinham em névoa. O vazio requisitava o lugar.

Tomou da tesoura e cortou os cabelos rente à nuca. Os cabelos, que agora já brancos e sem vida, que já haviam desistido, e que um dia, dizia-se, foram os mais belos de todo o mundo. Embrulhou-os em um lenço e guardou-os em um canto. As cólicas voltavam e ela sentiu o sangue já a lhe escorrer pelas pernas. Decidiu deitar-se. A vela estava se acabando. A escuridão apropriava-se do pequeno quarto. O cansaço lhe veio ao corpo e ao espírito. Adormeceu.

Às cinco da manhã despertou. Às quinze para as seis, a criada entrou no cubículo e lhe ofereceu um caldo. Ela respondeu-lhe: _Filhinha, de que me serve isso agora? Ainda se utilizava daqueles termos com os quais sempre tratara os criados, quando se dignava a lhes dirigir a palavra. _ Deveis estar forte para hoje, senhora, tomai o caldo. Consentiu. Sorveu algumas colheradas. Mas o alimento não fazia sentido no estômago. Tudo que havia era o vazio. Agradeceu à criada e pediu uma bacia com água para limpar-se. Sangrou das cólicas a noite toda. A criada voltou e ajudou-a a se lavar. Em seguida, trocou de roupas. Colocou um vestido simples, branco, uma touca também branca e nada mais. Não sabia onde colocar o pano sujo de sangue, temia que o pegassem como um troféu, como despojo daquela guerra insana. Enfiou-o no vão da janela, mais acima, na vã esperança de que não o encontrassem. A criada, percebendo seu embaraço, recolheu o pano, e com o olhar, deu-lhe a entender que se desfaria dele.

Às oito chegou um homem que não conhecia. Anunciou-se como Sansão. Um estremecimento percorreu-lhe o corpo já bastante fraco. O homem, que era imenso, lhe disse que estava ali para cortar-lhe o cabelo. _Já vos poupei esse trabalho, senhor. Buscou o lenço no canto do quarto e entregou-lhe: __Senhor, peço-vos que os entregueis a meus filhos! _ Senhora, não estou aqui para isso. Volveu o carrasco. _Mas apenas para recolher-vos os bens que serão doados aos pobres, são as ordens do comitê de saúde pública. Ela insistiu e, nesse momento, Gilberto adiantou-se e ofereceu-se para tentar a tarefa, recolhendo as mechas e guardando-as no bolso da casaca.

Sansão recolheu o que havia no quarto além da cama e da cadeira e se retirou. Ela se sentou e ficou aguardando.

Às nove chegou o abade que lhe ouviria a última confissão. Recusou-o. Não poderia se confessar com um padre constitucionalista.

Às dez, a porta novamente se abriu e o gigante voltou. Trouxe uma corda que lhe atou as mãos atrás do corpo. Ela consentiu sem um gesto. Saíram do quarto. Ao chegar à porta, que dava para a rua, o primeiro choque: A luz do sol que não via há meses. Por um instante ficou cega. Quando os olhos se acostumaram com a luz, o segundo choque, a última humilhação: Seria levada à guilhotina em uma carroça aberta. Ao marido, deram-lhe uma carrugem, para que não fosse submetido aos insultos do povo. Mas para ela, a mulher, sempre o castigo, sempre a negação. Baqueou e teve de se encostar à parede. Uma nuvem negra turvou-lhe a visão. Mas logo recuperou o controle. Pediram-lhe que subisse ao carro. Subiu, seguida sempre pelo gigante que, pela corda, lhe segurava as mãos atadas. Por fim subiu o padre.

O cortejo seguiu pelas ruas da cidade. A distância da Consiergerie até a Praça da Revolução era de um quilômetro e meio. O cortejo percorreu o caminho em uma hora e quarenta minutos. Com a cabeça erguida, sem uma só vez dirigir o olhar para a multidão, que se apinhava em ambos os lados, seguiu o seu calvário. Mas a massa reconhecia a coragem e a dignidade daquela mulher. Eram poucas as palavras. Fazia-se um quase silêncio. Um quase sinal de respeito. Uma quase consideração.

Às doze, chegaram. Ela foi convidada a subir a rampa que levava ao cadafalso. Já em cima, sentindo o cansaço do esforço maior para manter a dignidade, cambaleou, pisando sobre o pé de Sansão, o carrasco: _Perdão, senhor, não foi por querer. Aquelas foram suas últimas palavras. Em seguida, lançou o olhar azul ao longe, para onde terminava a praça e a multidão. O carrasco a pegou pelos ombros e deitou-a na prancha, pousando-lhe a cabeça sobre a meia-lua de madeira. Olhou para o cesto logo à frente, para as manchas do sangue de outros tantos que ali estiveram antes dela e às quais, agora, iria se misturar o sangue dos césares e sorriu. Sentiu um leve frio de metal na nuca e, em seguida, apenas a sensação de topar com o fundo.

Às doze horas e quinze minutos, Maria Antonieta se encantou.



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