domingo, 14 de dezembro de 2008

Sapho e a maestria das palavras

Tenho vontade de investir na tradução dos versos de Safo. Tradução talvez não seja a palavra correta, mas recriação, variação, transcriação sejam mais adequadas. Quase tudo o que restou são fragmentos inteiramente desfigurados. Lapsos, ausências, fendas, frinchas, interstícios. Onde vagueia a imaginação. Há, também, o eólico estranho e o uso que faz das figuras de linguagem, notadamente os muitos sentidos possíveis de algumas palavras e a constância de neologismos.
No fragmento de poema abaixo, a palavra ὄσσοις (óssois) é o dativo do irregular dual ὄσσε (ósse), que significa 'os dois olhos'. O dual é um terceiro número, relativamente pouco usado, pois tem a concorrência do plural, e que serve para designar seres ou coisas que aparecem em pares, como os famosos gêmeos, filhos de Zeus e Leda e irmãos de Helena e Clitemnestra , Castor e Pólux, ou as mãos, as pernas, um casal, dois amigos, etc. No entanto, há a palavra ὅσσοις (hóssois), onde o primeiro sinal ῾ é uma marca de aspiração da vogal, como o h da língua inglesa, ou os nossos rr. A palavra é uma declinação de ὅσος ou ὅσσος, cuja principal tradução é um advérbio, quanto/quão/tanto/tão. Como advérbio, em grego, apenas flexiona-se em gênero: masculino, feminino e neutro. Mas pode ter muitos outros significados e funções declináveis. Daí a complexidade, que não cabe expor aqui, mesmo porque não tenho a competência para isto.

Assim, após esta introdução enfadonha, mas necessária, o poema:

στᾶθι χἄντα φίλη*
χαὶ τὰν ἐπ' ὄσσοις' ὀμπέτασον χάριν


(stàthi chánta phílee

chai tàn êp (i) óssois (i) ompétason chárin)
Que transcrevi assim:
diante a mim, amiga, fique
e envolva-me com a graça de teus olhos

Como estava dizendo sobre os duplos sentidos das palavras sáficas, poder-se-ia transcrever o poema assim, utilizando-se o vocábulo tamanha como adjetivo de graça, como se os olhos do amigo* fossem e significassem um tanto de coisas?
diante de mim, amiga, fique
e envolva-me com tamanha graça
Na verdade não. ὄσσοις está no dativo/masculino/plural e χάριν - graça - no acusativo/feminino/singular. A primeira não poderia qualificar a segunda. Em grego, o adjetivo acompanha o caso em que está o substantivo. No entanto, me parece, fica ainda o duplo sentido, a insinuação. Safo era mestra nisso.

Acho que hoje abusei da paciência de meus leitores. Vou ter que acabar criando um outro blog, só para os poemas de Safo.

* No original φίλος, amigo. Tomei a liberdade de, neste caso, alterar o gênero.


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