Gilberto e Andréia em ilustração de uma edição antiga
Há pouco ou quase nada sobre Andréia de Taverney pesquisando na internet. Certamente é uma das personagens fictícias do romance, ou quanto muito, inspirada em pessoa real. O que acho bastante possível. Apesar da grande angústia em que me encontro tentando decifrar a personagem, receio não encontrar a quem me possa socorrer. Embora não tenha perdido as esperanças.
“Memórias de um médico” compreende cinco livros, conforme já o mencionei nos posts anteriores, sendo que os quatro primeiros foram escritos depois do quinto e último, que por sua vez, tem mais de uma versão, ou ao menos, tem histórias irmãs, como se pode dizer, que tratam do mesmo tema, que consiste, em parte, na narração sobre o período da revolução conhecido como “o terror”.
No livro, não há, propriamente, um protagonista, ou personagem central. Há os vários personagens que permeiam toda a trama que compreende 24 anos da história de França em seu mais dramático momento: os anos imediatamente anteriores e posteriores à queda da Bastilha, em 1789. Os únicos, destes personagens que aparecem em todos os livros são Maria Antonieta e Cagliostro. Gilberto, desaparece no “Colar da Rainha”, retornando, em seguida, para não mais abandonar a história; Felipe de Taverney reaparece, temporariamente, em “O Colar da Rainha”, para só retornar no quinto livro, intitulando-o: “O Cavalheiro da Casa Vermelha”. Nicola, que teria sumido no “Ângelo Pitou”, ressurge na “Condessa de Charny” mas não retorna mais. Luis XVI, apesar de rei, tinha importância secundária. Marat? em nada nos agrada tal criatura. Andréia, sobre quem este último tem funesta influência, a de se se levar pela superfície da trama, nos escapa ao fim da novela que leva seu nome: “A Condessa de Charny”. Digo isto porque desconfio da personagem de Andréia. Vou me explicar.
Toda a desconfiança vem, basicamente, do último dos livros: “O cavaleiro da casa vermelha”, que como já mencionei, é o próprio Felipe de Taverney, irmão de Andréia. Esta morre no final do quarto livro que leva seu nome: “A condessa de Charny”. O Conde de Charny, seu esposo, morrendo na defesa da família real, e mais especificamente, da rainha, como seus outros dois irmãos mais novos, tira de Andréia o gosto de viver. E, um mês após a morte do Conde, ela se suicida se entregando aos assassinos nos massacres de setembro. Uma coisa que chama a atenção, mas que pode ser fantasia minha, é que ela se mata por amor de um homem que, por sua vez, se mata por lealdade à rainha. Mas ficou a pergunta: Ele se sacrificou por lealdade ou por amor, já que tinha sido amante de Maria Antonieta? Ele ainda a amava? O amor por Andréia, descoberto depois de seis anos de cegueira, como ele mesmo diz, não podia ser apenas uma forma de tentar se afastar da influência da rainha? Não sei responder. Isto tudo pode ser uma bobagem minha. Mas...Por outro lado, se for verdade esta hipótese, que loucura o amor/morte de Andréia por alguém que morreu por outra...
Pois bem, seguindo esta hipótese, de Charny ter morrido por amor da rainha e Andréia tê-lo percebido, outro poderia ser o seu destino. Dumas pode ter disfarçado a história pela semelhança com algum personagem real em virtude de seus descendentes. Sabemos que ele teria agido assim em outras ocasiões.
Então vejamos. No quinto livro já mencionamos que o personagem que o nomeia é Felipe, irmão de Andréia. A história começa com uma mulher misteriosa, que vamos depois conhecer por Geneviéve. Não há o que me tire da cabeça que esta personagem possa ser a mesma Andréia. Há uma semelhança entre suas naturezas que passa por uma certa dignidade de nobres decadentes. Embora Andréia seja descrita como uma pessoa fria, como uma estátua (Dumas por diversas vezes no-la descreve assim), sabemos que era um comportamento forçado. Há nesta frieza de Andréia algo mais antigo que a experiência de estupro sofrida nas mãos de Gilberto. Algo que se remete à sua infância. E não sei ainda dizer o porque acho isso. Geneviéve é mais meiga. Mas não muito mais. Também tinha um domínio forte sobre suas emoções. Outra coisa é sua idade, Geneviéve tinha vinte e poucos anos. Porém Felipe é descrito como ora aparentando vinte anos, um mancebo, ora um senhor de quarenta anos. Que seria sua idade verdadeira. Andréia também estaria na casa dos quarenta. Mas não nos esqueçamos que são irmãos. Geneviéve, também, freqüentemente se refere a Felipe como “meu amigo, irmão e protetor”. Assim Andréia também o designava. Mas se Geneviéve era Andréia, quem era Maurice? Aí é que me complico. Não sei.
Na verdade, o que me ficou foi uma sensação de que Alexandre Dumas procurou, neste livro, nos transmitir mensagens que não estão explícitas. Não me pergunte quais são meus amigos e amigas, pois não o saberei responder.
Os heróis que sobrevivem à tragédia são aqueles do povo. A nobreza toda é morta ou desaparece. Gilberto e Billot sobrevivem saindo da França antes do Terror. Pitou e Catarina são os únicos a serem felizes. Pitou ainda mais que ela. Para mim, representam a ascensão do povo, ou, mais especificamente, de uma burguesia pós-revolução. À nobreza o que resta é uma descendência mestiça. Mas uma mestiçagem que custou caro. Isidoro, filho de Catarina e o Visconde de Charny, irmão do meio do Conde, custa a Billot o ódio que vai ter influência significativa, por exemplo, na captura da família real quando da tentativa de fuga para a Bélgica. Sebastião, cria de uma violação.
Talvez seja mesmo esta a idéia final que Dumas nos transmite. A de uma França mestiça de aristocracia e povo. Mestiçagem fruto de uma grande violência, de uma violação. Talvez uma característica de todas as mestiçagens.
Aqui encerro estas postagens sobre este livro que gostei tanto e do qual sempre me recordarei. Talvez um dia o leia de novo, como gosto de fazer com os livros que me custam caro. Talvez aí, eu possa ter interlocutores e me sinta menos sozinho.
É isso.