
Porque não posso deixar de falar das coisas que gosto. Segue este trecho da rapsódia XIX da Odisséia, na tradução para o português, em prosa, de Antônio Pinto de Carvalho.
A velha, que tomara na palma da mão a perna de Ulisses, ao apalpá-la, reconheceu a cicatriz; largou o pé, que caiu dentro da bacia, o bronze ecoou, o vaso oscilou e a água entornou-se pelo solo. Então, seu coração, a um tempo, foi tomado de tristeza e de alegria, os olhos se lhe encheram de lágrimas, a voz se lhe tolheu na garganta. E, tocando no queixo de Ulisses, disse: "Sem dúvida, tu és Ulisses, meu filho querido! E eu não te reconheci! Foi preciso primeiro ter tocado no corpo de meu amo!" Disse, e ergueu os olhos para Penélope, querendo preveni-la que seu marido estava ali, em casa. Mas Penélope nada reparou nem percebeu, porque Atena lhe desviara a atenção. Entanto, Ulisses com a mão direita agarrou a ama pela garganta, e com a esquerda atraiu-a a si e lhe disse: "Velha ama, não me queiras deitar a perder. Tu me criaste e me trouxeste ao seio. Hoje, depois de tantos sofrimentos, regressei enfim, volvidos vinte anos, à terra pátria. Já que me reconhecestes e um deus te fez descobrir a verdade, cala-te, e que em palácio ninguém o saiba. Porque, eu te declaro - e não serão baldadas minhas palavras - se um deus fizer que os nobres pretendentes sucumbam a meus golpes, quando, em meu palácio, matar as outras escravas, não te pouparei, muito embora hajas sido minha ama". A prudente Euricléia lhe respondeu: "Meu filho, que palavra te escapou da barreira dos dentes! Sabes, no entanto, quanto meu coração é firme e inabalável; serei como a dura rocha, como o ferro. Mas uma coisa te quero dizer: grava-a em teu espírito. Se um deus fizer que teus golpes prostem os nobres pretendentes, indicar-te-ei quais as mulheres que em teu palácio te desprezam e quais as que te respeitam". O industrioso Ulisses lhe replicou: "Velha ama, para que indicar-mas? Não é preciso. Por mim próprio as observarei e avaliarei o que vale cada uma delas. Agora, guarda silêncio, nem uma palavra, e confia nos deuses". Disse; e a velha atravessou o palácio a fim de buscar água para novo banho, porque a primeira entornara-se toda. Depois de ela ter lavado e ungido o amo com óleo pingue, Ulisses puxou novamente a cadeira para junto do lume, para se aquecer, e cobriu a cicatriz com os farrapos.
Há tanto neste trecho de literatura que coitado sou eu pra dissertá-lo. Mas chamo a atenção para a beleza de três coisas: A síntaxe portuguesa, o tempo, e a cena em si. Ainda não pude lê-lo no original. Mas chego lá. O que me impressiona é que, tendo mais de dois mil e quinhentos anos, soa tão real. Posso imaginar o quarto, à noite, onde se encontra Ulisses e Euricléia. E Penélope ao fundo. Escuto o som do bronze da bacia a tilintar no duro chão e da água a se espalhar em meio à angústia da situação. Posso ver o rosto da ama a se estupefar de surpresa, o de Ulisses a ansiar. Nem posso falar da mão na garganta a apertar, sou incompetente demais para isto. Em meio ao domínio do homem, há a doce e firme palavra da mulher, com que este post finalizo: "Meu filho, que palavra te escapou da barreira dos dentes!"
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