quarta-feira, 9 de abril de 2008

A Odisséia - Meu filho, que palavra te escapou da barreira dos dentes!

















Porque não posso deixar de falar das coisas que gosto. Segue este trecho da rapsódia XIX da Odisséia, na tradução para o português, em prosa, de Antônio Pinto de Carvalho.

A velha, que tomara na palma da mão a perna de Ulisses, ao apalpá-la, reconheceu a cicatriz; largou o pé, que caiu dentro da bacia, o bronze ecoou, o vaso oscilou e a água entornou-se pelo solo. Então, seu coração, a um tempo, foi tomado de tristeza e de alegria, os olhos se lhe encheram de lágrimas, a voz se lhe tolheu na garganta. E, tocando no queixo de Ulisses, disse: "Sem dúvida, tu és Ulisses, meu filho querido! E eu não te reconheci! Foi preciso primeiro ter tocado no corpo de meu amo!" Disse, e ergueu os olhos para Penélope, querendo preveni-la que seu marido estava ali, em casa. Mas Penélope nada reparou nem percebeu, porque Atena lhe desviara a atenção. Entanto, Ulisses com a mão direita agarrou a ama pela garganta, e com a esquerda atraiu-a a si e lhe disse: "Velha ama, não me queiras deitar a perder. Tu me criaste e me trouxeste ao seio. Hoje, depois de tantos sofrimentos, regressei enfim, volvidos vinte anos, à terra pátria. Já que me reconhecestes e um deus te fez descobrir a verdade, cala-te, e que em palácio ninguém o saiba. Porque, eu te declaro - e não serão baldadas minhas palavras - se um deus fizer que os nobres pretendentes sucumbam a meus golpes, quando, em meu palácio, matar as outras escravas, não te pouparei, muito embora hajas sido minha ama". A prudente Euricléia lhe respondeu: "Meu filho, que palavra te escapou da barreira dos dentes! Sabes, no entanto, quanto meu coração é firme e inabalável; serei como a dura rocha, como o ferro. Mas uma coisa te quero dizer: grava-a em teu espírito. Se um deus fizer que teus golpes prostem os nobres pretendentes, indicar-te-ei quais as mulheres que em teu palácio te desprezam e quais as que te respeitam". O industrioso Ulisses lhe replicou: "Velha ama, para que indicar-mas? Não é preciso. Por mim próprio as observarei e avaliarei o que vale cada uma delas. Agora, guarda silêncio, nem uma palavra, e confia nos deuses". Disse; e a velha atravessou o palácio a fim de buscar água para novo banho, porque a primeira entornara-se toda. Depois de ela ter lavado e ungido o amo com óleo pingue, Ulisses puxou novamente a cadeira para junto do lume, para se aquecer, e cobriu a cicatriz com os farrapos.

Há tanto neste trecho de literatura que coitado sou eu pra dissertá-lo. Mas chamo a atenção para a beleza de três coisas: A síntaxe portuguesa, o tempo, e a cena em si. Ainda não pude lê-lo no original. Mas chego lá. O que me impressiona é que, tendo mais de dois mil e quinhentos anos, soa tão real. Posso imaginar o quarto, à noite, onde se encontra Ulisses e Euricléia. E Penélope ao fundo. Escuto o som do bronze da bacia a tilintar no duro chão e da água a se espalhar em meio à angústia da situação. Posso ver o rosto da ama a se estupefar de surpresa, o de Ulisses a ansiar. Nem posso falar da mão na garganta a apertar, sou incompetente demais para isto. Em meio ao domínio do homem, há a doce e firme palavra da mulher, com que este post finalizo: "Meu filho, que palavra te escapou da barreira dos dentes!"

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