terça-feira, 22 de abril de 2008

William Bonner não é Homero


Muito se tem usado, nos últimos dias aqui no Brasil, a palavra tragédia a propósito do triste e horrível caso da menina Isabella. É fato que a expressão tragédia, em nosso mundo, adquiriu o significado de toda grande dor imposta ou infligida a um ser humano e que acaba por ser funesta a si ou a outrem. No entanto, se trata aqui de um uso indiscriminado e equivocado. Tragédia tem origem no grego τρᾶγῳδία que significa algo como "canto dos bodes". Estes bodes se originam dos sátiros que acompanham os cortejos de Dionísio, deus do vinho, dos prazeres e das diversões. Vem do culto de Dionísio as origens do teatro.
Para Aristóteles, o espetáculo para ser trágico, deveria sempre provocar a catarse, isto é, a purificação, no público, de pensamentos ou sentimentos doentios, reprimidos aos limites do inconsciente. Tomando-se de compaixão pelas desventuras do herói, o público deveria passar por uma purgação coletiva, curando-se de suas próprias dores, de seus próprios traumas. O protagonista deve ser sempre o herói trágico, isto é, aquele indivíduo que apesar da própria desgraça, consegue manter sua dignidade e integridade moral até o fim, pois que sabe não haver saída para o seu azar. Daí que não se pode atribuir uma tragédia a alguém que se viu envolvida nos acontecimentos sem que sua vontade deles participe. O destino é inexorável na tragédia, não se pode evitá-lo e nela se adentram os de maior caráter, quais sejam, os heróis.
No meu modesto entendimento o emprego da palavra tragédia é um exemplo da banalização a que se deu a determinados conceitos que os fazem perder seu sentido original e autêntico, deslocando o foco para um outro conceito de infinito menor valor. Tal é o caso de se utilizar a expressão para conceituar acontecimentos os mais díspares como o espetáculo do circo romano, a queda de um avião com centenas dentro, uma guerra estúpida ou mesmo a derrota da seleção brasileira para a Itália em 82.
As pessoas que iam ao teatro de Dionísio assistir a uma representação trágica sabiam, em sua maioria, que iriam sair dali mais humanizadas - no sentido positivo - quão maior fosse o texto encenado. Dizer que as tragédias gregas não passavam de um culto doentio da dor, do drama e do sofrimento e compará-las aos espetáculos de sangue e vísceras espalhadas no coliseu romano, ou à quantidade de notícias sobre crimes que pululam nos jornaizitos populares é de um simplismo medonho. É achar que se pode excluir da existência humana a dor ou o sofrimento. Chego a pensar se não é quase fascista tal postura ontológica, excluir o negativo para que se fique somente o positivo da dimensão humana. Se assim fosse, teríamos que proibir qualquer assunto onde algo sofra. Teríamos que queimar todos os grandes clássicos da literatura, ou os quadros de Goya, Picasso ou Velasquez (entre muitos outros), ou as peças de Mozart, Bellini ou Bizet e ainda toda a produção romântica e muita coisa mais. A vida tornada num eterno jardim de rosas. Não meus amigos, a vida deve ser plena e não pela metade. A dor e o sofrimento não podem ser ignorados. Algumas das pessoas que afirmam estar o ser humano pateticamente agarrado a uma moral da dor e do sofrimento ao se referirem às artes dramáticas não sabem o que estão falando. Criticam o uso do tema se utilizando do mesmo tema. Jornalismo-entretenimento não é e nunca será Arte. Se eu descobrisse aqui e agora que William Boner é perfeitamente capaz de substituir Homero, acho que desistiria da vida, pois tudo que amara minha vida inteira perdera o sentido. O dia em que o ser humano deixar de cometer atrocidades poderá a arte se ocupar apenas de temas leves (ou não), mas até lá é uma ferramenta para nos ajudar a perceber que a vida é mais que apenas o maniqueísmo do bem e do mal, que a vida não é só isto que se vê, é um pouco mais.

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Provérbios gregos