domingo, 19 de setembro de 2010

Recordar é viver?

Eis que nos últimos meses venho murchando. Não o murchar natural da vida, do envelhecer, que vai também ocorrendo, mas o murchar de uma morte menor. Uma das mortes em vida que todos somos obrigados a passar.
Mas, em verdade, nem sei eu em que morro. São coisas tênues, profundas, que se remexem no coração, difíceis de se identificar. Durante o dia, vêm-me inúmeras imagens, confusas, atropelando-se umas às outras, sucedendo-se sem nenhum critério de causa-efeito, que trazem-me lembranças fáceis, algumas, mas a maior parte de acontecimentos há muito esquecidos. Muitas dessas imagens não as consigo mesmo identificar. Talvez de outras vidas.
Haverá outra vida?
Um sorriso de mulher, crianças brincando junto à calçada, muros de velhas casas, a ramaria de algumas árvores balançando ao vento. Um velho vento soprando de algum antigo mar sobre um escuro e assombrado bosque de alguma ainda mais antiga vida. Por aquele bosque passava uma estradinha e, quando por ali se andava, o barulho de nossos passos podia nos assustar. Recordações de um tempo em que tudo era mais calmo e a vida transcorria lentamente.
A velha escadaria para a cidade alta em Vitória, na longínqua infância. A visão do porto e do velho penedo vistos lá de cima. Nuvens. A estrada antiga que ligava BH a Vitória e que passava por Santos Dumont, onde havia (e talvez ainda haja) o museu dedicado ao grande aviador. Lembranças desse museu que sempre me voltam. Uma aleia em flores, jardins, sombras dançando sobre o chão e sempre, sempre aquele escafandro que traz o terror à cena.
A manhã real de domingo vai. Está nublado o céu. Passarinhos cantam aqui e ali. Há um silêncio também. Há o velho vento que sopra. Há este texto confuso. Há o meu coração confuso. Há essas lembranças.
Uma carruagem faz uma curva sobre a estrada de terra. De dentro dela, alguém observa a paisagem que passa. Uma criança dorme embalada pelo sacolejo. Ao longe, uma casa grande sobre uma colina. Mais além, outras casas mais. Uma mulher que me abraça o pescoço, sorrindo, e me beija o rosto. Ela é feliz. O cachorro late. Também ele é feliz. Um passeio de cavalo, um lago, uma pescaria, um dia familiar perdido no tempo. As árvores, sempre as árvores. Por que, diferente de nós, elas se vão tornando mais belas quanto mais velhas se vão tornando? Um riachinho serpenteia pela mata. Borboletas flanam de um lado ao outro dele, poisando aqui numa flor, ali em outra. Besouros, libélulas, formigas, vespas, o bosque está vivo.
Eu estou vivo?
Em um velho canto de muro há um reboco caído. Não muito longe, há um outro muro, feito de pedra sobre pedra. Por detrás dele, um castelo. Que se passou ali? Houve um amor? Um crime? Talvez.
Numa certa rua em que morei, brincávamos todos os dias. Jogos de botão, futebol, rouba-bandeira, pique-esconde, pula-toco, finca em dias de chuva. Havia a velha igreja abandonada. Gostávamos de atravessar o quarteirão pelos telhados das casas. Vagávamos pelas ruas daquele bairro, lá na distante infância. Havia a escola. Ali, ainda há (estive lá) um velhíssimo ficus que me assistiu muitas correrias da infância. E também o primeiro beijo roubado.
Agora, um vento sopra pela janela. Uma porta bate.
Eu me pergunto se o sentido é só a experiência em si.

3 comentários:

  1. a sensibilidade do homem é tão necessária,
    e muito mais bela q a sua força...

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  2. Parece que foi um elogio e eu bem que ando precisando. Obrigado, Juliana!

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Provérbios gregos